O papo de legado da
Copa de 2014,melhorias em Itaquera, é um grande engodo
Enquanto
o mundo coloca os olhos sobre toda a badalação em torno do sorteio dos grupos
da Copa, os mais atentos brasileiros continuam testemunhando o andamento
interno do processo, comparando o discurso de legado com a realidade dos fatos.
Após a morte dos operários Fabio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos nas
obras do estádio de Itaquera, o lado obscuro dos megaeventos voltou a emergir.
“Com
certeza existe pressão sobre os prazos de entregas. No último dia 30, tivemos
uma reunião do Comitê Popular da Copa aqui em Itaquera, na qual contatamos uns
três operários. O medo deles de falar e se identificar são visíveis. Mas eles
realmente confirmam as denúncias. Todos aqueles com quem conversamos são,
individualmente, taxativos. Nas conversas que tivemos, falaram das pressões e
intimidações que existem, inclusive em relação ao acidente”, contou Serginho
Lima, morador de Itaquera de toda a vida, em entrevista ao Correio da
Cidadania.
Na
conversa, gravada em conjunto com a web rádio Central3, Serginho conta como a
ilusão, a respeito do prometido processo de desenvolvimento que desembarcaria
no popular bairro da zona leste, já dá lugar à insatisfação. Além disso, conta
que as necessidades mais básicas da população continuam em estado lamentável,
com os velhos problemas de saúde e educação, além da completa ausência de
esclarecimentos às centenas de famílias ameaçadas de remoção, especialmente da
Comunidade da Paz, a mais próxima das obras do estádio.
“De
modo geral, estão se desenhando, de novo, grandes manifestações. Penso que
aquele clamor, que vem de junho pra cá, continuará e Itaquera não vai ficar
indiferente. Com certeza, teremos outras manifestações. E na Copa também. Posso
estar enganado, mas é o que vejo se desenhar. Até por conta de novos
acontecimentos de responsabilidade do poder público aqui na região”, prevê
Serginho, que classificou como “engodo” as promessas de mudança de vida feitas
pelas autoridades públicas.
A
entrevista completa com Serginho Lima pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como vocês enxergam o trágico acidente ocorrido no
dia 27 de novembro, nas obras do Itaquerão, que terminou com a morte dos
operários Fabio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos?
Serginho Lima: Pra responder a pergunta, ficamos, de certa forma, um pouco
preocupados. Pois temos gente nossa que trabalha dentro das obras. Aqui, perto
da minha casa, tem um moço que veio do Nordeste, com família, e na hora do
acidente tivemos de correr e nos informar da situação, para tranquilizar sua esposa
e sua filhinha.
Infelizmente,
foram duas mortes, mas, se não fosse o horário de almoço, poderiam ser mais.
Ficamos muito tristes de ver a morte de dois operários, duas pessoas simples,
do povo, que estavam no seu ganha-pão.
Correio da Cidadania: O que você comentaria a respeito das denúncias que
já aparecem de insegurança e também de pressão para conclusão da obra? O diário
Lance publicou, na edição de 30/11, denúncia de um operário, explicando que a
mesma peça, no lado norte do estádio, foi dividida em duas, antes de ser
encaixada no topo da cobertura, e dessa vez tentou-se colocar de uma única
vez...
Serginho Lima: Ah, sim, com certeza existe isso. No último dia 30, tivemos uma reunião
do Comitê Popular da Copa aqui em Itaquera, na qual contatamos uns três
operários. O medo deles de falar e se identificar é visível. Mas eles realmente
confirmam as denúncias. Todos aqueles com quem conversamos são,
individualmente, taxativos. Nas conversas que tivemos, falaram das pressões e
intimidações que existem, inclusive em relação ao acidente.
É
lógico que isso mostra o comportamento da Odebrecht e as empresas que conduzem
a construção, de pressionar os operários para terminar a obra dentro do prazo
anterior (31 de dezembro). Agora, vai demorar é muito mais (o Comitê
Organizador da Copa estima a entrega do estádio em abril).
Correio da Cidadania: O que o Comitê pode falar a respeito da dinâmica
das obras da Copa, neste e nos demais estádios, que já registraram greves,
acidentes e mortes em algum momento?
Serginho Lima: Eu, propriamente, sou novo no Comitê. Nós, da zona leste e Itaquera,
procuramos o pessoal há pouco tempo, pra nos juntarmos à luta, uma luta por
direitos, travada pela comunidade e as pessoas que aqui residem. Há pessoas com
mais embasamento e conteúdo pra falar da questão. De toda forma, algumas coisas
são visíveis, até pelos posicionamentos dos operários e operárias com quem
temos contato – também há mulheres na obra, inclusive moradoras daqui.
Correio da Cidadania: Como está a questão social envolvida pela obra? O
que vocês podem nos contar a respeito de remoções de famílias pobres no entorno
do estádio?
Serginho Lima: Sobre isso, posso falar melhor. Estou há 40 anos em Itaquera e agora
fomos movidos a lutar, por demandas que aqui não existem, não chegam. E vamos
vendo que a história de “legado da Copa” é uma grande mentira. Hoje mesmo (a
entrevista foi gravada na quarta-feira, 4), recebi a ligação de um dos líderes
da ocupação da Comunidade da Paz, aquela mais próxima do estádio. Estamos até
ajudando o pessoal a fazer um ofício, passar pela formalidade do processo e
poder buscar informações.
No
dia 23/10, houve uma audiência pública com essa comunidade, na subprefeitura de
Itaquera. E anteriormente, um cadastramento, onde haveria o anúncio de que 101
famílias (do chamado ‘setor 1’ da ocupação) seriam as primeiras reassentadas,
entre as 377 famílias. As outras, por sua vez, ficariam para depois. Mas
disseram que as 101 precisariam sair da ocupação da favela da Paz por causa da
continuidade das obras do entorno do estádio.
O
dia prometido do anúncio, 23/10, já passou, nada aconteceu e as famílias estão
ficando desesperadas. A obra está chegando lá, o túnel, a ponte, e até agora
nada de resposta a eles. Só há indecisão, silêncio e nenhum posicionamento de
autoridade oficial sobre o que acontecerá com as famílias.
Correio da Cidadania: E o prometido desenvolvimento e progresso a serem
trazidos à região, em benefício de sua população? Como tem sido esse processo,
que se refere ao tão aclamado “legado” da Copa?
Serginho Lima: Com relação à saúde pública, podemos informar que a situação é muito
ruim. Essa mesma comunidade da qual estamos falando não tem atendimento do
chamado Programa Saúde da Família. Até nas outras comunidades, como a minha,
que fica a 10 minutos de condução do estádio, não observamos nenhuma melhoria
para o povo.
Eu
não vou participar da Copa, não vou estar lá dentro. O espetáculo do futebol é
muito belo, mas percebemos que o papo de “legado da Copa”, “melhorias em
Itaquera”, “uma Itaquera centro do mundo”, é um grande engodo, uma propaganda
enganosa. Teria de ser bom pra todos, não só aos empresários, instituições
envolvidas, mas não é o que acontece.
Vocês
podem vir aqui que poderemos detalhar, inclusive oferecendo o contraditório.
Mas está visível, creio que qualquer pessoa que você parar em Itaquera, perto
do metrô ou até pouco depois, pode confirmar. Podemos contemplar um túnel, uma
ponte, ainda não terminada, e um parque cercado, um parque linear que eles
dizem não ser obra da Copa. Dizem que já estava planejado anteriormente.
Fora isso, nada.
Nessa
semana mesmo, chegou a mim uma demanda de mãe, de comunidade próxima ao
Itaquerão, que está desde 2012 aguardando lugar na creche para o filho dela. É
um absurdo, verificamos que não existe nada de investimento na educação, na
saúde e na infraestrutura do bairro. Remédios e materiais demoram pra chegar,
vêm de forma limitada... E com isso nós vamos vendo a indignação ficar muito
maior que a alegria.
Correio da Cidadania: Com 40 anos de Itaquera, nota-se seu
esclarecimento a respeito do processo político em torno do bairro, além de sua
maior familiaridade com movimentos sociais. Mas, saindo desse aspecto, como são
suas conversas com a vizinhança, as pessoas do bairro com quem você sempre teve
contato? Existe uma insatisfação generalizada ou ainda são muitas pessoas
inebriadas pelo discurso e o circo da Copa, com todas as suas promessas?
Serginho Lima: De forma geral, a alegria já foi maior. Foi muito grande quando do
anúncio do Brasil como sede, maior ainda quando o Itaquerão foi confirmado como
sede paulista, enfim, havia todo esse contexto. Confesso que até pra mim foi
assim. Mas depois fomos vendo os acontecimentos. E a população começa a
enxergar através da poeira, não pelo que mostra a mídia grande, e sim pela voz
das ruas e das lutas. Fazemos parte de uma parcela do povo que, realmente,
enxergou um pouquinho mais tarde.
Existe
a paixão pelo futebol, sem dúvidas. Agora, porém, você conversa com pessoas que
dizem “olha, não precisávamos de Copa nesse exato momento da vida, do jeito que
estamos aqui e do jeito que se faz”. Falo do povo mesmo, no geral, não de
militantes que estão na luta. Falo da população que pega seu trem, metrô, vai e
volta do centro, cansada. Essas pessoas vão te dizer que gostam de futebol, são
apaixonadas, mas que não precisavam de Copa, não nesse momento e não dessa
forma. Com certeza, a grande maioria diria isso no momento.
Correio da Cidadania: E com o quadro traçado por você a respeito da
realidade dos fatos e a percepção da população, quais serão as próximas
movimentações políticas do Comitê e também dos habitantes de Itaquera?
Serginho Lima: De modo geral, estão se desenhando, de novo, grandes manifestações.
Penso que aquele clamor, que vem de junho pra cá, continuará e Itaquera não vai
ficar indiferente. Com certeza, teremos outras manifestações. E na Copa também.
Posso estar enganado, mas é o que vejo se desenhar. Até por conta de novos
acontecimentos de responsabilidade do poder público aqui na região.
Fonte.Gabriel Brito e Leandro Iamin (Correio da cidadania)